Google+ Google+

Eu não me lembro

Por Dan Cilva

Era bem tarde e as estrelas eram o único farol a conduzir aquela viagem perdida.
Cabeça já pesada querendo deitar ao volante e mesmo assim quero ir para o mais longe possível daquele lugar.

Perdi-me no tempo, alonguei demais o jantar naquele restaurante de beira de estrada. 
O zumbido dos pneus contra o asfalto rachado, cascalho por cascalho e a borracha negra acinzentada que se desgastava em meio a trilha escavada na terra pelo próprio homem. 

Meus dedos suam enquanto os cravo firmemente no volante, raramente cruzo com outro carro e aquele meu par de faróis acabam solitários em meio a escuridão. A noite me atormenta e por mais que não queira assumir, o som continuo do motor se perde em meio a minha mente que se esvazia de todo o senso logico e da calmaria diurna. Já ouvi falar muito dessas coisas, que é bem nessa hora da noite que ela vem. Bem aqui na estrada, ladeando os imprevistos procurando perturbar a paz daqueles que apenas ali passem.

Vejo ponteiros, não há mais ninguém aqui...

Uma curva apos a outra e meu caminho se torna mais e mais curto. Sinto meu coração apertar quando apos cruzar um túnel em meio as montanhas,  tenho um rápido vislumbre de algo que aparenta ser uma cruz branca entre algumas baixas arvores, alguém morreu prematuramente ou tardio demais. Ali jaz homem ou mulher, criança ou idoso. Esse pensamento tristonho logo me levou para uma triste situação a qual me encontrei há alguns anos onde segui o cortejo fúnebre de um infante que partiu deste mundo tendo estado aqui tão curtamente, não por razão de doença mas pela mão do homem. Ao menos foi o que disse o coveiro. Naquele dia, não havia quem no canto do olho não derramasse uma lagrima sequer.

A mãe piedosa, como sofria aquela mulher que não vinha buscando culpados nem maldizendo seu destino, vinha copiosamente em um silencio e sua feição congelada em uma expressão de profunda dor daquele tipo de dor que não desata a garganta, que mata a gente aos pouquinhos. As lagrimas não rolaram por seu rosto, talvez essa tenha sido a maldição que carregaria pelo resto de seus dias. 

Era uma pequena caixa angular de madeira em branco, adornada com detalhes em prata. Até o ar naquele momento era mais denso e era possível sentir todo o peso daquilo que doía em todos que por ali passavam. No tampo havia uma pequena janela por onde era possível ver flores de diversas cores, as mãozinhas, o rosto. Aparentava sonhar. 

Eu o vi descer lentamente, por maldade ritualística e por falta de outro jeito de faze-lo, o infante desceu lentamente ao chão. 

Depois que todos se recolheram, eu fiquei. Observava tudo por alguma razão mistica, meus pés não queriam me tirar daquele recanto. O que eu sentia, talvez por não ser da região, era um misto de pavor que subia compulsivamente pela pele com um senso desnorteado de justiça. Caminhei mais alguns passos agora que estava só. Havia algo que eu pudesse fazer?

Uma ultima lembrança, um gesto mesmo que simbólico de corrigir as coisas?

Um telefone me acorda do meu transe, é da recepção, já está na hora de eu partir do hotel. Eu não me lembro, está escuro. Respondo para a voz da mulher do outro lado que descerei em breve. Tateio o criado mudo na procura pelo abajur. Um clique bastou para me atirar de volta a realidade. Eu estava todo sujo de terra preta e vejo pelos cantos do quarto toda sorte de velas apagadas e meio derretidas. 

O que houve comigo? 

Eu não me lembro

Apos lavar meu corpo a calma volta as pitadas mas o breu que se formou nessa lacuna de tempo continua. isso foi alguma brincadeira de péssimo gosto de algum ser perturbado daquele vilarejo esquecido por Deus. 

É dada a terceira noite e não consigo dormir sem ter a nítida e insana sensação de que mais alguém me acompanha. Não posso dirigir a noite, não quero ver a noite. É no escuro que essa presença de seja lá o que for vem me acompanhar, me esperar.

Eu tenho que parar em algum lugar, preciso de café ou estimulante que seja. Preciso de luz. Aqui está escuro demais, é no escuro da noite que ele vem.

Entre as curvas e tuneis escuros que ele respira junto a mim, é neste entre  esquecimentos que ele me perturba, foi no vislumbre de seus olhos no espelho retrovisor que perdi a direção e fui jogado da estrada para um abismo negro e sem fim. Enquanto o carro revira e volta entre as pedras e o capim no longo paredão ingrime creio poder ouvir algo tamborilando no porta malas e este som mesmo em meio ao caos da morte que se aproxima me joga ao lampejo de momentos. 

Há uma cabeça humana no meu porta malas.

Apos o impacto contra a rocha que parou o veículo antes de cair livremente em um riacho logo a baixo, duzentos metros mais precisamente, sinto todo o corpo doer e mesmo assim consigo me arrastar para fora dos escombros de meu veiculo. 

Vou arrastando de uma perna e com dificuldade vejo o brilho da água escura correndo no fundo do abismo.

Sorte?

Eu não quero ver, mas preciso. Volto para o que sobrou do carro, toda sua lataria retorcida e descascada mas quando chego ao bagageiro é onde está o estrago mais estranho. Cortes paralelos que forçosamente abriram o porta malas, o que havia em seu interior provavelmente foi espalhado pela mata acima.

Preciso de ajuda, não posso ficar aqui até amanhecer, sei que não sobreviverei.

Rasgando as pontas dos dedos no pedregulho e mato que compõe o paredão apos uma hora de esforço desumano chego em fim a estrada.

Eu preciso de um lugar para me esconder. Sei que está a minha volta e que pode findar minha existência a qualquer instante. Que assim que desejasse eu seria tal qual a cabeça que decapitei...

Eu me lembro. Havia no povoado uma mulher que mexia com o obscuro e que invejava a jovem mãe do enterro de ontem. Que foi essa mulher a levar a vida da criança para alimentar suas maldades ou algum demônio que fosse. Que não mediria esforços para fazer a jovem mãe sofrer. Uma pessoa que se alimenta do sofrimento alheio não pode ser humana. Assim me contou o coveiro...

Lembro de estar no cemitério, lembro de caminhar entre as casas e becos no vilarejo, por entre as arvores do bosque que ninguém ia tarde da noite. Entre memórias vejo que havia sangue em minhas mãos e que fizeram comigo algo macabro que custo a acreditar ser real.

A madeira range e a porta quase cai ao chão quando socada três vezes em meio a escuridão. Meu coração quase se vai com o terror que me toma. Encontrei a pouco uma velha casa abandonada que consegui me encobrir na própria escuridão, na esperança de me proteger. Aquilo está lá fora e veio me buscar mas por qualquer razão não adentra a casa.

Sinto o suor frio escorrer pelo meu corpo. Tão violento quanto, meu coração bate de forma ensurdecedora ao ponto da vertigem e pouco me lembro senão o cair exausto e entregue. Não aguento mais...

Tudo escuro e logo em seguida água, fria e contínua em meu rosto, escorria pelos furos no telhado de uma velha igreja abandonada. Chovia de maneira que não era possível continuar mais tempo ali. Aos poucos me removendo até a saída, reparei que o sol já vinha entregando o dia para os vivos e que eu poderia seguir viagem pela estrada.

Espero encontrar uma cidade o quanto antes...  (continua)