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Bocas Vorazes


Foram seis balas que descarreguei no crânio daquela coisa.

Era alto e revestido por pelos negros, havia em seu odor algo de azedo e era perceptível duas enormes presas por onde escorria sangue, seu e talvez de quem se alimentara.

Segundo moradores locais, entre transeuntes e bêbados recostados em alguns botecos, havia uma coisa que devorava o gado a noite e que os Oliveira estavam sofrendo perdas terríveis com tal besta a assolar sua propriedade.

Os Oliveira eram a família mais abastada e aparentava ser um lar harmonioso e pacífico. Joel Abelardo Oliveira, sendo o chefe da família e pastor da comunidade evangélica local, a todos trazia conforto e admoestava aqueles que se perdiam.

Quando fui chamado por dona Helena, mãe de minha assistente, não acreditei muito de começo, até mesmo quando fui diretamente falar com a família de Joel. No entanto o mesmo não se encontrava em casa, dizia sua esposa que seu marido estava a preparar o culto daquela noite e que tinha por predição ficar sozinho para orar ao Senhor.

"Ah, Pedro... por favor, o senhor sabe que nunca peço nada! Só para aquietar minha mãe que não passa as noites sem falar em outra coisa! Pois pelo que vejo das pilhas de livros sobre ocultismo que vem se acumulando no escritório, mudou de profissão ou anda vendo muito filme de terror!"

Não sentia a ferida amaldiçoada da mão nem um pouco, nem mesmo no bar. Era realmente uma boa cidade para se viver. Procurei então uma pousada.

Entre as casa térreas que margeavam as ruas daquele povoado, próximo a região central, havia uma pequena hospedaria, não era pequena demais nem tão pouco era um hotel. 

Suficiente para eu não ter que voltar na mesma tarde, perigando ficar a mercê de dirigir a noite. Após tudo que aconteceu, meu sono se tornou estranho e sensível. Laio já insistia que eu me tornara narcoléptico e já receitava uma pequena lista de remédios para os nervos. 

Tanto o quarto quanto a cama que aluguei pela noite me eram bem confortáveis e por entre as frestas da persiana de madeira eu conseguia ver partes da catedral que marcava o centro da cidadezinha.

Para não me perder no sono, deixei o rádio do celular bem baixinho como já fazia meu velho pai. Era para facilitar o regresso do mundo dos sonhos dizia ele. 

Não sei ao certo quanto tempo se passou, mas a rua já se fazia silenciosa quando escutei ruídos vindos do telhado, percebi aos poucos minha mão marcada começar a formigar. De olhos bem atentos, já não fazia som algum, apenas o Kansas continuava a tocar em alguma velha rádio local. Saquei da minha arma e recostei junto a janela para tentar observar algo que pulava e se agarrava a torre lateral da igreja. Estava escuro mas ainda podia vê-lo pela luz do luar, era algo similar a um cachorro muito grande.

Abri a janela bem devagar para não ser percebido e com a luz apagada me esgueirei como pude sem perder a criatura de vista. A mesma forçava seu grande corpo para o topo e ali, na grande cruz, ficou dependurado observando. Por um momento pensei que estivesse me encarando, meu sangue gelou as veias.

O ser obscuro observava imponente até que seu olhar parou no sentido para o final da rua da igreja.

Esgueirei entre postes e pilares das casas enquanto tal criatura se locomovia naquela direção. Não demorou muito e perdi o monstro de vista. 

Por mais que eu tenha recebido treinamento e me aprofundado em técnicas de investigação, furtividade não era das minhas melhores habilidades. 

Apos dar algumas voltas pelo quarteirão e sem encontrar pistas voltei frustrado para a pequena hospedagem. 

No dia seguinte telefonei para Natália, minha auxiliar para dizer para a mãe que não havia nada de anormal mas que como o clima da cidade era agradável eu permaneceria mais uns três dias como uma espécie de férias curtas. Minha jovem parceira não gostou muito pois quando eu me ausentava mais que dois dias era para Natália cuidar do escritório e atender a todos que me procurassem pelos serviços.

Após comer um grande pedaço de bolo e apagar meu sono com uma generosa xícara de café rumei para a pequena capela. 

Meus passos curtos aproveitavam do meu relaxamento e nesse momento, cada detalhe dos poucos metros até eu me por de frente ao templo cristão eram bem vívidos aos meus olhos. Havia um cheiro de incenso que vinha do interior da grande casa a minha frente. A grande porta de madeira rustica estava aberta e já a poucos metros da pequena escada de três degraus era possível observar o cristo pendurado na cruz, surrado e com sua coroa de espinhos. Sua expressão me causou uma certa repulsa, não pelo que cristo representa mas por aquilo que milhares de homens fizeram e fazem em seu nome. 

Por um instante me perdi profundamente na questão do que eu estava realmente fazendo ali. Me arrisco demais nessa busca quando deveria fechar meus olhos para esse mundo por trás da cortina.

"Ele venceu a morte por nos..." 

A voz bem suave vinha de um senhor que beirava bem os noventa anos. A batina preta e a gola branca me deixara um pouco surpreso, não era todo dia que eu falava com um padre.

Padre Carlos possui muito vigor para sua idade e tanta calma que faria de qualquer transito caótico de São Paulo um local legal.

Depois de umas duas horas que acompanhei padre Carlos pelos seus afazeres naquela simples igreja, revelei para ele minha insatisfação na empreitada (mesmo sem revelar os detalhes obscuros que o assunto contem). "Algo que está em oculto aos olhos da carne, estão explícitos aos olhos de Deus!" 

Mais tarde essa mesma frase faria um sentido mais do que literal...

Renata Oliveira é uma jovem de no máximo dezessete de idade com as sardas que salpicam suas bochechas, com o todo do rosto adornado por seu longos cabelos castanhos e seus grandes olhos azuis. Essa jovem adentrou as pressas os umbrais do mercadinho que também era adega e também ponto de encontro dos moradores daquela pequena cidade. "Um litro de leite seu Antenor!" 

Sentado ao canto do balcão eu observava sua pressa e o motivo de uma jovem que é filha de uma família que tem de tudo vir até a cidade buscar apenas um litro de leite. 

Seu Antenor não questiona e nem cobra o valor pelo leite e assim como entrou, Renata retoma seu caminho de casa.

Mais uma coxinha e uma soda pedida ao homem atras do balcão e uma pergunta como quem não quer nada. A resposta foi mais estranha do que a ação de Renata. "Não se envolva com aquilo que não entende."

Paguei os lanches e os refrigerantes, sem questionar passei pela porta da velha adega foi quando meu sangue gelou. A ferida em minha mão se abre e começa a sangrar com uma pontada fina. Um vento arrasta um turbilhão de folhas secas e o pó da rua. Mesmo no meio da tarde, uma grande nuvem escura de chuva retorcida paira no horizonte lá para os lados dos Oliveira. Meti as mãos no fundo dos bolsos da jaqueta surrada e sigo caminhando, quero me aconselhar com o pastor.

A estrada de terra vermelha era até boa mas não deixava de ser de terra. Já a meio caminho da casa grande dos Oliveira percebo que o ar está denso e parado. Nem mesmo os pássaros cantam. "Aquilo que está oculto aos olhos da carne..." Algo rosna dentre as árvores. Não identifiquei o animal rapidamente, minha arma já procura seu alvo e é quando vejo ele surgir em meio ao capim alto. Agora durante o dia sua imagem fica clara, mesmo que seja perturbadora e surreal sua existência, suas presas e garras aliado aos traços lupinos evidenciam quem é e que minha morte se aproxima a cada passo seu.

Com toda raiva transmitida pelo grito de minha pistola, o tiro surra o couro e a pelagem do monstro. O único pensamento que me vem é aquela criatura deve morrer!

Com o ombro sangrando, o monstro foge em meio ao mato. Toda uma coragem sobrenatural me preenche e mesmo a dor da mão some em meio a perseguição. 

A incursão não me permitiu descansar e a cada momento favorável eu disparava contra o monstro.  

Foi então que após a constatação de seu óbito foi que reparei onde estava e meu corpo pesou naturalmente. Deixei a arma escorregar por entre os dedos após me sentar bruscamente no solo. Tudo ali era sujo e tinha um tom de podre. Não era escuro, no entanto só me permiti ficar ali sem qualquer receio por conta da aberrante forma que jazia sangrando caído próximo a mim.

A certeza que morrera veio da cicatriz em minha mão que parou de sangrar. Sempre que estou perto dessas coisas, que sabe-se lá de onde vieram, dependendo do quanto for agressiva a besta, minha mão formiga, as vezes essa marca dói e no pior dos casos chega a sangrar. Melhor isso do que a loucura de deitar a cabeça a noite fingindo acreditar que nada disso aconteceu ou que monstros não são reais e que não existem inocentes.

Deitado sobre a relva, pensei nas palavras do padre "Algo que está em oculto aos olhos da carne, estão explícitos aos olhos de Deus!"

Devo correr, quero ceiar com os Oliveira...