Por Daniel Cilva
Era de manhã quando atravessei o portão de aço retorcido envolto em densa vinha. O céu azul manchado de branco com nuvens aqui e acolá derrubava sobre as árvores uma brisa fresca. Cada passo firme meu rente ao solo deixava certo que minha memoria fragmentada ainda detinha as respostas do que deveria ter feito e partes do que houve com meu corpo. Este corpo que peguei emprestado para cumprir tal macabra tarefa.
Seguindo pela calçada de pedras entalhadas de espadas e flores, não muito longe era possível contemplar a assombrosa arquitetura clássica de uma mansão erguida ao céu com suas pontudas torres laterais e a quantidade desconcertante de janelas. De frente a grande porta de velha madeira há um antigo chafariz desativado pelo tempo com o que parece ser uma sequencia de banheiras para pássaros. Deste ponto ainda era possível ouvir o som das copas das árvores da longa floresta de onde saí e onde se encontra encrustada a casa de Agatha, a vidente que me acolheu e destrancou-me o baú das memorias, agora resta-me montar as peças para concluir minha vinda.
Lembro de um portal, mais velho que o tempo... lembro de corredores brancos e de alguém falando comigo. Este alguém me entregava um pequeno cofre de madeira lacrado em suas bordas com placas de aço trabalhado por alquimistas. As memorias vinham e eu seguia para a porta da mansão em direção a maçaneta. Toca-la foi como levar um tiro. Algo em mim queimou por dentro e como se atropelado fui arremessado ao ar batendo forte as costas ao chão. A pele em minha mão avermelhou ao tom de sangue e cresceram bolhas na palma onde toquei na peça de metal. Quase que instintivamente lancei um gesto ao ar estendendo a palma como se pudesse agarrar a porta e como um todo, luz se projetou dos meus olhos e boca enquanto uma voz que não era minha pronunciou sons indescritíveis aqui, um relâmpago rasgou o ar e após a luz conectar por um instante minha mão a porta, veio a explosão de ar e madeira lascada e um gigantesco estrondo que poderia ser ouvido do outro lado dos quilométricos campos onde jaz este imenso mausoléu amaldiçoado.
Emergi em meio a densidade de poeira e penetrei a escuridão. Algo naquilo tudo estava me deixando irritado e desta irritação veio a coragem até mesmo para derrubar em uma briga de bar até um deus menor.
O interior da degradação ali erguida era uma prova de que o tempo tudo devora e junto com ele traz seus filhos arrependimento, soberba e memorias. Meus passos me guiaram pelo salão principal onde toda a grande estrutura era sustentada por gigantescas pilastras trabalhadas em mármore e em seu centro corria até um tipo de grande altar um longo tapete vermelho aveludado com bordas de um dourado ainda bem vivo. O altar também feito no mármore se elevava por dois degraus aproximados e sobre o mesmo havia um pequeno espelho de vidro bem sujo e de bordas afiadas trabalhadas com entalhes prateados. O que quer que eu devesse fazer ali exigia aquele espelho em meu poder.
Por um momento tentei limpar meu reflexo na manga de minha camisa sem um mínimo sucesso era como se o desgaste estivesse apenas no reflexo e que se eu quisesse desobstruir a visão dele deveria limpar de dentro para fora...
Nada desde que minha jornada começou carrega um pingo de coerência devido a natureza e gravidade de minha ordenança, logo aqui encontro mais uma prova disso. Procurando no reflexo algum canto onde pudesse enxergar algo anormal como a maçaneta da mansão, reparei no grande retrato sobre a lareira atrás do grande altar onde encontrei o espelho.
Do meu ponto de vista o quadro retratava um homem de idade vestindo algo como um traje militar arcaico, alguém como um barão condecorado e de rosto adornado por longa barba branca. No pouco espaço que conseguia ver na superfície suja do espelho identifiquei uma mulher de densa cabeleira negra com seu vestido de gala vermelho, em ambos os casos seus olhos pareciam me fitar culposamente.
Uma ideia correu em minha mente e do mesmo modo me atirei para fora da mansão indo de encontro ao chafariz; procurando o reflexo da seca estrutura, como havia suspeitado, no mundo do espelho este adorno de jardim ainda corria água por suas camadas e num gesto de levar a mão até o fundo seco em meu mundo, vi minha palma se encher na cristalina água do reflexo e esta usei para limpar o espelho por dentro.
Era possível agora ver os dois portais paralelos ao portão principal da mansão de onde emanavam uma fraca luz azulada.
Se havia uma certeza depois do esclarecimento ao encontrar a vidente é de que preciso me reencontrar no fundo de minhas memorias e resgatar-me do coração de minhas ilusões. (continua)